Friday, February 13, 2009

O Mouco

Entre os colegas da camarata todos o tratavam pelo nome próprio, João Paulo, e nenhum deles sabia explicar o motivo da alcunha de Mouco pela qual era conhecido em todo o estabelecimento prisional, fosse entre detidos ou funcionários. Pois ele não denotava qualquer deficiência auditiva. Pelo menos, quando era do seu interesse ouvir o que estava a ser dito.
O que dava bons motivos para a diversão de todo o pessoal era a sua dislexia oral, chamemos-lhe assim, a qual consistia na deturpação involuntária morfológica das palavras criando ele a sua própria versão. O "iorgute, as caratatas do Niaraga, a tupesfacção, o escupir (do verbo cuspir, segundo o Mouco, era: eu escupo, tu escupes, ele escupe...), os Palistianos (Palestinianos), a piscologia". Até que alguém se lembrou de um remédio que pontualmente tinha o seu quê de eficácia. Como era rara a palavra com mais de duas sílabas que o Mouco não deturpasse, a solução estaria na recepção da palavra já na versão deturpada. Por exemplo, não era preciso conhecer muito bem o Mouco para saber que ele não conseguiria pronunciar a palavra "perplexidade" correctamente. O remédio estaria em lha comunicar de forma incorrecta, por exemplo, ouvindo ele perlepexidade, poderia ser que acertasse e pronunciasse no seu modo equivocado a versão correcta. E assim foi, quando o Gimbras, colega mais velho da camarata, lhe pediu para pronunciar espatafúrdio, ele tentou repetir acertando na pronunciação correcta da palavra. Foi com vivas e gargalhadas que foi recebida a palavra estapafúrdio, repetida várias vezes, entre a malta daquela cela, já em horário de recolhimento. Seguiu-se o patarata, que lhe foi transmitida como tarapata. Escusado será dizer se ele tivesse ouvido patarata o efeito teria sido o inverso.
Assim era com a sua muito famosa pontaria. Ou melhor, a falta dela. Nos jogos de futebol, do pátio do recinto prisional, todos deitavam as mãos à cabeça quando o Mouco pegava na bola. para acertar na baliza a uma distância de cinco metros, o Mouco conseguia fazer o impossível e o impensável e numa trivela que faria inveja a Ricardo Quaresma a bola ia 10 metros para o lado oposto. O Pinguim, de há muito membro vitalício da equipa técnica da ala oeste do presídio, teve uma ideia de todo em todo idêntica à do Gimbras em relação à dislexia. O velho mestre da táctica e da estratégia em campo cimentado conseguiu convencer o Mouco a rematar sempre para o lado contrário do qual pretendia acertar. A coisa resultou até a marcação de um célebre penálti, no qual o Mouco mandou a bola para a Quinta da Vilariça, acertando a bola na cabeça de um jogador de golfe que lá se encontrava no jogo de fim-de-semana.
Esta táctica de acerto de pontaria não se aplicava apenas no futebol e no desporto. O Mouco já sabia que se quisesse arremessar o pequeno transístor para o seu beliche, teria de fazer pontaria para o lavatório, que ficava meio metro para a direita.
Dizia o Gimbras, meio a sério meio a brincar, que o Mouco só pode ter nascido por acidente. Pois em tudo na vida com o Mouco, funcionava assim. Casou ele com a sua mulher pois tudo fez para conquistar a melhor amiga dela, usando-a a ela como confidente e mensageira. No fim já tão farta ela estava de seu papel e ele tão desanimado que só restou aos dois se unirem no infortúnio.
A única excepção a esta ordem das coisas foi precisamente naquilo que motivou a detenção do Mouco. A única vez que teve uma arma de fogo nas mãos, a espingarda de caça do seu primo Zé Luís, o Mouco fez pontaria cheio de intenção para a sua mulher que o azucrinava com uma berraria sem igual, estando a ser tão insuportável como mais ninguém conseguia ser. Convencido de que a arma estava descarregada, o Mouco apontou-a à megera e enquanto dizia PUM simulando o tiro infantilmente, a arma disparou mesmo acertanto um tiro no meio dos olhos da malograda companheira. A uma distância de mais de quatro metros, o Mouco conseguiu fazer inveja na pontaria ao mais tarimbado dos atiradores. Não se pode dizer que estivesse a fazer pontaria a um alvo diferente, tal como lhe foi recomendado nos jogos de futebol da prisão, pois ele na simulação sabia muito bem onde lhe apetecia acertar. Não contava ele que a arma estivesse carregada, contingência essa que lhe valeu uns anos de prisão e a salvação de uma vida bem mais tortuosa ao lado de quem chamavam a Bezerra, devido a esta ter uma voz e umas gargalhadas que faziam lembrar esse animal.
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